#30: Encontros
Há uma curiosidade incontrolável ao ver uma mulher sozinha num bar escrevendo em um diário misterioso.
Foi o guia de um walking tour em Kyoto que me recomendou um bar de rock um pouco fora do centro turístico. Era no caminho de volta para minha acomodação, então resolvi checar.
Cheguei lá assim que ele abriu, e confesso que a impressão não foi das melhores. Era uma unidade no segundo andar de um prédio comercial - algo que, fui descobrindo, é bem comum na Ásia. Ao sair do elevador, entrei em um hall iluminado com uma luz fluorescente que piscava, uma vibe bem de filme de terror. As caixas abandonadas e a parede manchada não ajudavam muito. Mas insisti.
Abri a porta do bar, ao final do corredor. Era um lugar pequeno, sem janelas, com um balcão minúsculo, poucas mesas e uma decoração… Peculiar. As garrafas empoeiradas no balcão competiam espaço com dezenas de cabeças decapitadas de bonecas, caveiras e figurinhas de ação do Gundam Wing. Era possível ver a fumaça dos cigarros da noite anterior. Tocava Aerosmith nas caixas de som.
Não havia ninguém. Por um momento achei que eles ainda não tinham aberto, então fiquei parada na entrada por alguns segundos. Até que olhei para um cantinho com os engradados de cerveja e vi uma pessoa; meio humana, meio fantasma. Ele tinha cabelos longos totalmente grisalhos e era todo pequenininho. Ele podia ter qualquer idade entre 40 e 80 anos. À primeira vista, ele me lembrava o Steven Tyler. Mas quando sorria, seu rosto ficava totalmente enrugado e parecia mais com as máscaras do teatro Kabuki.
Era o dono do bar e único funcionário. Agora era tarde demais para desistir.
Ele me deu as boas vindas e indicou qualquer assento. Como de costume quando estou sozinha, escolhi a ponta do balcão, o lugar perfeito para quem quer mostrar que está receptiva a conhecer pessoas. Não que tivesse alguém para conhecer naquele momento, além das barbies decapitadas.
Pensei comigo mesma que tomaria só um drink e depois procuraria algum lugar mais… Acolhedor. Pedi um highball e troquei algumas palavras com o bartender, no meu escasso japonês baseado no Duolingo e uma juventude assistindo animes. Ele era assustador e fofo na mesma medida. Perguntou de onde eu era e eu disse: Burajiru.
Um minuto depois começa a tocar Pitty.
Passado o choque inicial, eu dei risada e tentei indicar ao bartender que eu gostava muito daquela música. Ele pareceu satisfeito. Como eu disse, um fofo.
A porta do bar se abriu e um casal entrou. Pensei aliviada que finalmente não seria a única freguesa. E então escuto a moça falar em português: "Não acredito que tá tocando Pitty!”
Impossível me controlar. Eu olho para eles como uma criança olha pros pais quando acha que estava perdida no supermercado e exclamo: "Brasileiros!”
E assim começamos uma relação.
Eles sentam numa mesa atrás de mim, mas o bar parece uma sala de estar e estamos só nós três (além do bartender), então ficamos conversando.
Chegou quando em Kyoto? Aonde mais você já foi no Japão? Qual o roteiro? Vai ficar quanto tempo?
O papo foi fluindo, e de repente eu já havia me juntado à mesa do casal e dividimos um litrão de cerveja, mini garrafas de sakê e salgadinhos de arroz. A sala de estar do bar virou um boteco, e depois de 3 anos morando na Alemanha e 10 dias viajando pela Coréia do Sul sem conhecer ninguém (exceto pelo homem mais detestável do mundo conforme relatei nessa edição aqui), eu me sinto em casa.
Esse encontro é igualmente incrível e bizarro. Enquanto conversamos, descubro que eles moravam em Berlim até o mês anterior e que acabaram de se mudar para Amsterdam. Descubro que o marido trabalhava na mesma empresa que um amigo meu. E que a esposa trabalhava no mesmo restaurante que a esposa do meu amigo. E que esses dois casais… São amigos.
Entro em parafuso com a coincidência de conhecer um casal brasileiro que por acaso morava em Berlim e que são amigos dos meus amigos… Em um bar bizarro no segundo andar de um prédio comercial em Kyoto.
Quais as chances?
Mandamos fotos para nossos amigos em comum. Bebemos mais um sakê. O bar foi enchendo de fregueses e eu nem reparei.
Depois de algumas horas, nos despedimos. Eles foram procurar um restaurante para jantar. Eu voltei para o meu assento no balcão para uma saideira com o bartender Steven Tyler Kabuki. E depois parto em busca de um gyoza.
Esse foi meu primeiro dia em Kyoto, e inaugurou uma série de encontros com pessoas maravilhosas que fui conhecendo pelo Japão e que deixaram essa viagem ainda mais inesquecível.
Acima, vídeo exclusivo do bar de rock tocando Pitty em um prédio comercial em Kyoto, com bonecas decapitadas e o dono de cabelos longos grisalhos.
Há um sabor especial de conquista quando eu consigo me conectar com estranhos nas minhas viagens.
Até hoje lido com as repercussões de uma juventude repleta de insegurança e isolamento. Carrego um fantasma da criança estranha da turma que não tinha amigos e sofria bullying. Basicamente, detesto conhecer gente nova.
A antecipação de conhecer alguém me dá um extremo desconforto que inclui dor de barriga e taquicardia. Cada centímetro do meu corpo está ligado na sensação de luta ou fuga, com ênfase na fuga. Recentemente um cara num bar em Berlim me deu uma abertura, e eu praticamente saí correndo. Só percebi o que fiz quando estava sem fôlego a duas quadras de distância.
Mas quando eu viajo, eu carrego comigo uma personalidade alternativa. A Luiza-criança-ansiosa fica em casa, e só a Luiza-adulta que já morou no exterior quatro vezes e furou dezenas de bolhas sociais ao longo dos anos é que embarca na aventura.
Essa versão minha senta na ponta do balcão de um bar para indicar que sim, eu estou disponível para conhecer pessoas. É um convite: "por favor, venham falar comigo".
Até criei uma técnica. Nas viagens, carrego um diário. Peço uma bebida e começo a escrever, sempre calculando pausas longas em que eu fecho o caderno e fico observando o movimento ao redor. Na maioria das vezes, a pessoa sentada perto de mim ou o bartender vai aproveitar essa pausa para puxar papo. Há uma curiosidade incontrolável em ver uma mulher sozinha num bar bebendo sua cerveja artesanal e escrevendo em um diário misterioso.
Essa técnica transformou minha viagem pelo Japão. Em outro bar de Kyoto, em que o bartender era um senhor todo curvado que poderia muito bem ter 100 anos de idade, conheci um casal australiano muito divertido e ficamos conversando a noite inteira. A moça também fazia journaling (nome chique para diário de viagem) e queria muito saber o que eu estava escrevendo. O bar era tão pequeno que nossa conversa eventualmente envolveu todos os clientes, e parecia que eu estava em uma festa privada.
Já em uma cervejaria em Osaka, um britânico puxou papo comigo numa das minhas pausas programadas da escrita. Descobrimos que ambos éramos apaixonados por cerveja artesanal e nos encontramos novamente no dia seguinte, no que foi possivelmente a noite mais divertida de toda a minha viagem. Ela envolveu um tour por três bares - incluindo um bar secreto atrás de uma máquina de vendas em um prédio comercial -, um restaurante de frango cru e minha primeira experiência no karaokê japonês.
Encontrei outras pessoas também, mesmo sem usar minha técnica. Invadi a lua de mel de um casal dinamarquês que me levou para comer yakitori em Osaka. Fui a única freguesa de um bar de cocktail em Tokyo e ensinei o dono a fazer caipirinha de sakê (ele amou!). Comi okonomiyaki com uma inglesa que conheci num tour em Hiroshima. Fiz um bar hopping no Golden Gai com um pessoal do hostel que tinha acabado de conhecer.
Cada uma dessas pessoas está registrada no meu diário de viagem. Algumas delas mantiveram contato comigo pelas redes sociais, e outras eu nunca nem soube o nome. Mas não importa.
Todos esses encontros deixaram um sabor muito especial de conquista, que eu trouxe de volta na mala para a Luiza-criança-ansiosa que ficou em casa.
Sayonara!
Eu costumo fazer um pouco isso, sentar no balcão, pedir algo e escrever alguma coisa no meu diário, mas pelo menos aqui em SP não senti abertura de outras pessoas para conversar, costumo fazer essas pausas também, observar ao redor, etc. Foi gostoso ler sua experiência.