Desde que eu me entendo por gente eu lembro de ouvir a vó Helena contando de quando ela foi para o Japão em 1986.
Eu não lembro das histórias em si. Não sei exatamente os lugares que ela visitou nem quanto tempo durou a viagem. Só sei que uma amiga dela estava indo com um grupo de descendentes japoneses e minha vó conseguiu ir junto. Sei que ela foi para a Disney Tokyo, e que ela deu mamadeira para bebês de urso panda no zoológico.
Lembro de ela falar da organização, limpeza e educação dos japoneses com uma admiração que ela não tinha por mais nada nessa vida. Ela me contou dessa viagem milhares de vezes, e milhares de vezes eu percebia que essa tinha sido possivelmente a maior aventura da vida dela.
Sem saber, minha vó - que com 15 anos mentiu a idade para trabalhar como enfermeira, ficou viúva em 1979, morava sozinha, vivia fazendo cursos e trabalhos voluntários, se enfiou num avião e foi pro Japão numa época em que essa viagem era inacessível para a maioria das pessoas - plantou uma semente em mim.
Desde que eu me entendo por gente, eu sonho em dar mamadeira para os bebês panda no zoológico de Tokyo.




Eu tinha um ritual favorito de fim de ano.
Todo começo de dezembro, eu passava um final de semana na casa da vó Adélia. A gente decorava a árvore de natal juntas e depois ia com a tia Ana até o bairro da Liberdade - o bairro japonês de São Paulo.
Seguíamos um roteiro à risca. Primeiro, parávamos na Igreja dos Enforcados para acender velas para os mortos. Depois, íamos numa lojinha dessas que vendem de tudo: canetas, leques, relógios, decoração para casa, utensílio de cozinha, cadernos, maquiagem... Íamos sempre na mesma loja de uma família japonesa que já conhecia minha vó pelo nome (“Boa tarde Dona Adélia!"), e por isso eu passei minha infância inteira acreditando que eles eram amigos. Era lá que minha vó comprava as lembrancinhas de natal para todo mundo, desde a manicure até o dono da banca de jornais.
Compras feitas, finalmente parávamos para almoçar sempre no mesmo restaurante japonês por quilo. Depois, passávamos na Galeria Sogo, onde eu comprava DVDs piratas de Naruto, e no mercado Marukai para fazer um estoque de doces e salgadinhos japoneses. Para finalizar o roteiro, íamos na padaria Itiriki, na esquina da estação de metrô, onde eu sempre comia um daifuku, um doce meio borrachudo de mochi com morango.
Na adolescência, esse ritual continuou, mas eu também frequentava a Liberdade quase que semanalmente. Era o meu programa favorito com minha amiga Luisa (Luiza e Luisa, uma amizade predestinada) na nossa época mais otaku, e com meu grupo de amigas do colégio quando íamos almoçar yakissoba depois da aula.
O bairro da Liberdade mudou. A lojinha da família não existe mais, e a padaria Itiriki também não está mais lá. Cada vez que eu vou, ela está menos japonesa. Mas foram todos esses anos passeando por lá que alimentou meu sonho de ir para o Japão.
Algumas vezes eu achei que não era para ser.
No final de 2016, quando ficou claro que eu teria que sair da Inglaterra, eu estava em um processo seletivo para ser professora no Japão. Era uma última tentativa de não voltar para o Brasil. Mas fui recusada, e tive que adiar o plano.
Três anos depois, frustrada pelo trabalho em agência de publicidade e com a vida em São Paulo, decidi que era hora de uma aventura. Juntei todas as minhas economias, comprei uma passagem só de ida para Tokyo, e estava negociando um contrato de freelancer para trabalhar da Ásia. O plano era passar pelo menos 6 meses entre Japão, Coreia do Sul e China. Seria a maior loucura da minha vida. Mas aí uma loucura maior aconteceu: 2020 chegou e com ele, a pandemia. Cancelei tudo, e mais uma vez achei que o sonho não viria.
Anos mais tarde, já vivendo na Alemanha, reformulei todo o plano. Não iria mais morar no Japão nem virar nômade digital, mas comprei uma passagem (ida e volta) para passar 5 semanas de férias no Japão e Coreia do Sul. Um roteiro mais singelo, porém ainda assim um sonho.
Reservei todas as hospedagens, alguns passeios, fiz um itinerário incluindo 7 cidades, e já estava arrumando minha mala quando, duas semanas antes do embarque, fui demitida do meu emprego. Contei todo o drama na edição anterior da newsletter.
#26: Sabático
Seja quem for a pessoa que cunhou a expressão “cuidado com o que você deseja”, ela provavelmente estaria rindo da minha cara.
Fiquei na dúvida durante alguns dias, mas no final decidi que já era tarde demais para cancelar. No dia 11 de outubro, embarquei nesse sonho.
Quando voltei, todos me perguntaram: “Como foi realizar seu maior sonho?”
Não soube responder. Nem sei dizer exatamente o que eu estava esperando. Como devemos nos sentir quando realizamos um sonho?
Certamente eu estava - e ainda estou - feliz. Mas dizer que estou feliz parece tão… insuficiente.
Pensei nisso durante toda a viagem. Tive momentos emotivos, quando realizava os sonhos dentro do sonho. Chorei quando visitei o Museu do Studio Ghibli, folheando o storyboard original da Princesa Kaguya e vendo uma animação com bonecos do Totoro. Também me emocionei sentada na praia enquanto olhava para o Torii flutuante na ilha de Miyajima, o primeiro lugar na minha lista de “coisas para ver no Japão”.
Tiveram alguns outros momentos, assim como esses, em que de repente eu lembrava que estava realizando um sonho e então ficava muito emocionada. Mas nos outros momentos, na maior parte da viagem, aconteceu algo ainda mais mágico: eu vivi. Simples assim.
Foram semanas de muita calma. Indo de um lugar para o outro sem pressa. Parando para olhar vitrines ou sentando num parque para observar as pessoas ao meu redor. Toda tarde eu visitava uma cafeteria diferente para tomar café com bolo e ler um livro ou escrever no meu diário de viagem. Se eu passava na frente de um bar interessante, eu entrava para tomar um drink e conversar com o bartender. Almoçava devagar, comprava todas as comidas de rua que eu via pelo caminho e jantava duas vezes porque queria experimentar tudo. Viajei pelo estômago.
Não tinha metas nem objetivos. Acordava a hora que acordava, saía para passear quando desse vontade, voltava para a hospedagem quando ficava cansada. Se tivesse que ir de uma cidade para outra, comprava a passagem de trem na noite anterior ou até direto na estação na hora de partir. Não tinha amanhã. Vivia cada momento nele mesmo.
Foi a maior viagem da minha vida. E foi também a viagem mais tranquila da minha vida.
Dizer que fiquei feliz é simples demais. Então prefiro dizer que fiquei na mais absoluta paz.
No final das contas, não dei mamadeira para nenhum bebê panda. Não é mais permitido, mesmo se tivesse algum bebê panda. Mas comi daifuku numa barraca de rua perto do Fushimi Inari e pensei com carinho nas tardes na padaria Itiriki. Ensinei um bartender a fazer caipirinha de sake, comi ovo cru, pratiquei meu fraco japonês e conheci muita gente interessante.
Enquanto escrevo esse texto, imagino como seria trocar essas histórias com a vó Helena, e comparar a minha experiência com o Japão de quase 40 anos atrás que ela conheceu. Me pergunto se algum dia ela teve noção da semente que ela plantou, e que eu finalmente colhi depois de tanto sonhar.





“Como foi realizar seu maior sonho?” me perguntam.
Não sei responder. Talvez eu ainda esteja realizando, penso enquanto já começo a sonhar com a próxima viagem para o Japão.
Sayonara!