Se tem uma coisa que Berlim me proporcionou, foi a natação. Com uma rede pública invejável, você encontra ao menos uma piscina em cada bairro, com preços acessíveis e parcerias com plataformas estilo Gympass.
Uma dessas piscinas fica a menos de 10 minutos de casa, e há um bom tempo que eu venho frequentando com relativa consistência. Duas vezes por semana eu acordo antes das 6 da manhã para ir nadar. No inverno, eu vou e volto ainda no escuro - esses são os dias mais difíceis de sair da cama. Na primavera, já tenho a sorte de sair de casa com a luz do dia.
Percebo aos poucos que vou melhorando no esporte. No começo, mal conseguia dar 20 voltas. Não tinha fôlego e precisava respirar a cada braçada. Meu lado esquerdo sempre foi mais travado do que o direito, mas trabalhei muito minha postura e essa diferença vai ficando menor.
Hoje, já dou em média 40 voltas - o equivalente a 1.000 metros - e consegui encontrar um ritmo entre braçadas desajeitadas.
1… 2… 3… Respira.
1… 2… 3… Respira.
Às vezes a respiração vem tranquilamente. E às vezes eu arranco minha cabeça da água e puxo o ar freneticamente, angustiada.
A extrema-direita vem crescendo na Alemanha. De novo.
Umas semanas atrás saíram notícias que a AfD, o partido da ala extremista, organizou uma reunião secreta para discutir a deportação em massa de imigrantes, incluindo aqueles que já teriam conquistado a cidadania alemã. Bem ao estilo da minuta golpista de Bolsonaro.
Anteriormente eu teria escutado essa história e dado risada com um “até parece que vai acontecer”. Hoje, já não sinto tanta certeza.
Ao mesmo tempo, o governo alemão vem abrindo mais e mais espaço para atrair imigrantes, com o objetivo de compensar o abismo gritante no mercado de trabalho. Não há profissionais de saúde, educação nem tecnologia nesse país.
Entre os novos benefícios está a possibilidade de tirar cidadania alemã em 5 anos sem abrir mão da original e com com o idioma intermediário. Nós, brasileiros, poderíamos em tese ter dupla cidadania.
A notícia foi o suficiente para me convencer. Contratei uma professora particular e estou me dedicando para chegar ao nível B2 em alemão.
Mas enquanto eu me movimento em busca da tão sonhada dupla cidadania, não consigo deixar de me preocupar. Fico nervosa toda vez que escuto dos planos mirabolantes da AfD, do discurso insistente do governo pró-Israel no que diz respeito ao genocídio em Gaza, da cegueira seletiva que os alemães têm em relação a estrangeiros.
Fico desnorteada com o paradoxo que é viver num país desesperado por pessoas como eu, e que ao mesmo tempo dá cada dia mais indícios de que não somos bem vindos.
1… 2… 3… Respira.
Meu corpo dá sinais de que algo está estranho.
Têm mais pêlos onde antes eram raros, tem menos cabelo onde antes era cheio, minha menstruação está desgovernada, e convivo com cólicas e enxaquecas inéditas.
A cada novo sintoma, busco meu médico de família, apenas para ouvir dele um “não posso fazer nada, não há informações o suficiente para investigar”, e novamente volto para casa frustrada.
Começo a criar rancor de ir ao médico, sabendo que a experiência será mais desgastante do que os sintomas em si. Busco curas alternativas em chás e vitaminas, e torço para nunca precisar de um atendimento urgente.
Frente à dificuldade de marcar consulta e o desinteresse total em buscar uma solução, prefiro ficar doente.
1… 2… 3… Respira.
Percebo que não estou dando conta.
Entre aprender alemão, tentar evoluir na carreira, manter a casa limpa e arrumada, cozinhar e comer saudável, fazer exercício físico, lavar a roupa de cama com frequência, encontrar amigos, ter hobbies, fazer o imposto de renda, instalar cortinas, consertar um ventilador quebrado e buscar uma paixão de verão, não estou dando conta.
1… 2… 3… Respira.
Começo a deixar os pratinhos cair. Ou melhor, começo a deixar os pratinhos. Ponto.
Tenho louça na máquina de lavar há 4 dias, e não há mais nenhuma colher limpa para fazer café. O de menos, pois o café já vai acabar e eu ainda não fui ao mercado.
Preciso escolher minhas prioridades e vou abraçando a noção do que não escolhi. Conto as braçadas e tiro a cabeça da água com calma.
1… 2… 3… Respira.
Às vezes na natação eu fico agoniada.
Acontece quando tem outro nadador vindo na direção contrária da raia, e passa por mim bem na hora que eu levanto a cabeça pra respirar.
1… 2… 3…
Sufoco.
O movimento do outro joga uma onda no meu rosto e eu acabo engolindo água da piscina.
Nas primeiras vezes que isso aconteceu, eu entrava em desespero. Parava no meio da raia, tossia, puxava o ar com força, recuperava o fôlego e voltava para a borda abalada, odiando o colega nadador com toda a minha alma.
Por um tempo, fiquei insegura toda vez que vinha outra pessoa na direção contrária. Queria evitar a onda no meu rosto a todo custo.
Mas aos poucos entendi que esse momento era inevitável, e fui descobrindo técnicas para lidar com ele. Não é toda vez que funciona, mas atualmente já consigo manter a calma, colocar a cabeça na água e levantar de novo na quarta ou quinta braçada.
É como um soluço. Respiro no próximo tempo, e volto ao ritmo original.
1… 2… 3… Pausa…
Respira.
uou, que texto forte. mexeu comigo. te desejando força, coragem e fôlego!
Você transformou angústia em poesia. Obrigada