#21: Dor de crescimento
Deixar a louça na pia durante a noite - sem culpa - é meu maior ato de rebeldia.
Recebi uma amiga aqui em casa por duas semanas. Ela veio participar de um congresso em Berlim e aproveitou para curtir uns merecidos dias de férias.
É uma amizade de mais de 20 anos, e uma das pessoas mais confortáveis de se ter por perto. Ela tem um ritmo tranquilo e dá corda para qualquer conversa. Se o assunto acaba, ninguém fica na pressão de preencher o silêncio. A confiança é tanta que eu até a convenci de ir comigo no spa nu.
Acho que poucas coisas dizem mais sobre uma amizade do que passar o dia juntas peladonas, no meio de outras pessoas peladonas, batendo papo e tomando um aperol.
Foram duas semanas tranquilas em que eu pude ter alguém para dividir a casa e as refeições. Revigorante para quem já está tão habituada a morar sozinha.
Mesmo assim, algumas vezes me peguei com um super protecionismo pela casa. Pequenos atos que eu notava com mais intensidade do que seria merecido. Ocupar um espaço aqui, derrubar uma coisinha ali, esquecer disso ou daquilo ao sair do cômodo.
Nada demais, tanto que nem comentava sobre eles. Era muito menos sobre a visitante e muito mais sobre eu me readaptar a dividir um espaço, mesmo que por pouco tempo, que já foi completamente modelado para mim.
Mas para quem cresceu numa casa-vitrine com um regime militar de limpeza e organização, notar meu incômodo com questões do lar é muito mais doloroso do que o próprio incômodo.
Percebo-me numa corda bamba tentando equilibrar dois lados meus: o que quer evitar ao máximo repetir os passos dos nossos pais, e o que sabe que invariavelmente vamos, ao menos em parte, nos tornando mais parecidos com eles.
Tento me afastar dos padrões de “casa arrumada” que me foram ensinados sem saber que padrão eu quero criar. Às vezes sinto rancor pelo espaço desproporcional que o cuidar da casa ocupa na minha cabeça. Mas outras vezes - na maioria das vezes - vou olhando com mais carinho para a carga mental das tarefas domésticas. A minha e, especialmente, a da minha mãe.
Ou melhor, de todas as mães.
Vou percebendo que não era só a minha casa que vivia sob regime militar, mas a maioria das casas mantidas por mães em dupla jornada. Um fenômeno mundial. Escuto relatos de “não deixa a louça na pia” das minhas amigas do Brasil, Guatemala, Argentina e Japão.
Noto uma geração de mulheres (sempre mulheres) que cresceram seguindo regras rígidas de limpeza e organização e que agora estão tentando criar regras mais brandas em suas próprias casas.
É peculiar. Nos livros e filmes coming of age, as dores de crescer e se descobrir são sempre representadas por paixões, inseguranças e corações quebrados. Nenhum deles jamais mostrou que sair do ninho e se libertar do seio da família é também deixar a louça na pia durante a noite sem culpa.
Passo os últimos dias pensando justamente nela: a família.
Não a que a gente escolhe e vai reunindo ao longo da vida. Mas aquela de sangue, que sempre foi tão próxima e presente na minha infância.
No meu aniversário, quase ninguém além dos meus pais me ligou para desejar parabéns. Já não é a primeira vez, e honestamente não culpo ninguém. Se tem uma coisa que eu venho sentindo nos últimos meses é como somos engolidos pela vida.
O que doeu dessa vez foi que nem meu irmão se lembrou de mandar uma mensagem. E nos dias seguintes eu fui sendo consumida pela noção de que esses laços - com meu irmão, mas também com todos os outros - mudou.
Chego à conclusão que essa família se tornou pequena. No sentido literal (quem acompanha desde a primeira edição deve ter notado que metade das pessoas no retrato de Natal já se foram) e também no não literal.
Questiono em que momento esses laços foram se alongando e sei, instintivamente até, que foi a vida acontecendo. Levo esse sentimento pra terapia e escuto: você também escolheu ir embora.
A verdade é que fazer escolhas dói.
Escolhi seguir uma vida que fizesse mais sentido para mim do outro lado do mundo, e nessa escolha eu fui embora. Ingênua, achei que poderia manter minhas relações no Brasil como sempre foram. Talvez com algumas até tenha conseguido, mas afinal de contas a vida foi acontecendo. Aqui, e lá também.
Aceitar esses novos laços, abraçá-los, ficar em paz com eles, é talvez a maior dor de crescimento.
A terapeuta pergunta: quem é sua família aí?
Consigo pensar imediatamente em alguns nomes que a compõem; essa sim, feita por pessoas que vão nos acolhendo pelo caminho.
Não é o mesmo tipo de família, mas não importa. Afinal, os laços continuam mudando; às vezes se alongando, às vezes se estreitando. E a dor de crescer vai amenizando.
Tschüßi!
Me identifico com muito do que você escreve sobre morar fora e infância com a família Lu, neste caso sobre o que vai acontecendo com os laços. Penso que esse crescimento a que se refere não termina nunca. A terapia me ajuda a contar que a vida é inteira de ir formando novas familias e fazendo novas fotos de natal, até mesmo em honra de todos aqueles outros da infancia.
Amo sua escrita sentida, sensível e sincera.
me identifiquei com várias partes! principalmente com a ideia ingenua de que, após sair do Brasil, as relações seguiriam as mesmas…