#5: Viajar sozinha e amadurecer
Um devaneio sobre os últimos 10 anos e o entendimento de que viajar sozinha continua sendo um ato político.
Em 2016, duas moças argentinas foram assassinadas durante uma viagem pelo Equador. O caso foi amplamente divulgado nas redes sociais e gerou uma trend com a tag #viajosola - ou #viajosozinha em português.
Na época, eu estava no mestrado em jornalismo em Londres e fiz um projeto multimídia sobre o assunto, do qual me orgulhei muito - mas infelizmente perdi tudo pois não fiz backup. Algo recorrente na minha vida pelo visto.
Foi naquele momento que eu entendi pela primeira vez que viajar sozinha é, entre muitas outras coisas, também um ato político.
Minha família nunca foi muito de se espantar com minhas viagens. Nunca me desestimularam nem tentaram me impedir, mas sempre houve, claro, uma preocupação que foi aumentando quanto mais longe eu ia. A cada viagem, as mensagens dos meus pais de "olha lá hein", "vê se te cuida", "não leva coisa de valor" e "cuidado com aquela região" iam ficando mais enfáticas.
Mas eu também escutava outros tipos de frases de amigos, colegas, parentes mais distantes, e até pessoas que eu mal conhecia. Frases que, até onde eu sei, viajantes homens normalmente não escutam.
"Nossa, o que você vai fazer lá?"
"Ah, como você é corajosa!"
"Mas você vai sozinha mesmo?"
"Você tem certeza?"
Já nas viagens, eu passei a escutar ainda mais comentários. Esses, de homens que eu cruzava, como o garçom do restaurante ou alguém que puxou papo comigo no bar.
"Você tem namorado?"
"E ele deixou você vir sozinha?"
"Sua família deixa você viajar sem um homem?"
"Nossa, como você é diferente."
"Vem me encontrar aqui quando eu sair do trabalho."
No começo, eu ficava sem graça e tentava me desvencilhar da enxurrada de opiniões sobre minha viagem. Confesso que eu demorei muito para entender o motivo dessas perguntas e de onde elas vinham.
Foi com anos de prática e muita ponte aérea na bagagem que eu fui entendendo melhor essa situação e encontrando maneiras mais práticas de responder. Por exemplo, menos de um mês atrás o motorista do Uber em Lisboa me perguntou se eu tinha namorado, no qual eu respondi com um "Não." Assim, seco, beirando a grosseria, de uma maneira que deixava claro que o assunto estava encerrado. Ele não me perguntou mais nada depois.
Chegar nessa habilidade de falar um "Não e conversa encerrada" precisou de tempo e experiência. E é sobre essa experiência que eu estou devaneando hoje.
Como eu comentei na newsletter passada, a Mari Moro da Isto não é um telegrama veio me visitar em Berlim. Foi sua primeiríssima viagem longa e, sim, sua primeiríssima viagem sozinha.
Numa das nossas conversas, ela me contou sobre o medo que sentiu ao embarcar numa rota de um dia inteiro entre São Paulo e Berlim, sem nunca ter feito uma escala num aeroporto. E sobre a ansiedade que foi se organizar para essa viagem, sem saber o que levar, o que esperar, como se preparar.
Essa conversa alimentou muito uma reflexão que eu venho tendo há um tempo, sobre como eu mudei desde que eu comecei a viajar sozinha. Mais especificamente, como minha reação a essas viagens mudou.
Ouvir da Mari as inseguranças dela parecia um relato preciso da Luiza que foi para a Argentina sozinha pela primeira vez mais de 10 anos atrás. Eu lembrei do nervoso que eu passei, o medo de ter que enfrentar situações inéditas, e o constante pensamento de "o que eu estou fazendo aqui?".
Naquela viagem, eu passei muito perrengue e cada um deles parecia ser o fim do mundo. Eu chorava de nervoso numa rodoviária caótica porque não entendia o que estava acontecendo e achei que tinha perdido meu ônibus para Mendoza. Eu me vi numa greve de transporte no primeiro dia de aula e chorei de nervoso de novo porque achei que não ia chegar na escola a tempo. Eu chorava de vergonha por não conseguir me comunicar com o host da casa que me recebeu. Eu chorava de medo por estar perdida de madrugada numa região que tilintava todos os meus instintos de sobrevivência. Eu chorava, sem saber exatamente se de felicidade ou ansiedade, por perceber como eu estava mudando naquela viagem.
No final das contas, sobrevivi aos perrengues. E na viagem seguinte, quando fui morar nos EUA um ano depois, passei por outros. Eu me vi sem dinheiro nenhum e me alimentando de amostras numa feira livre em San Diego. Tive que passar a madrugada em claro no metrô em Nova York porque não podia entrar no hostel, tendo como companhia um rato do tamanho de um cachorro de um lado e um morador de rua que parecia estar morto do outro. Comecei a sentir o quão difícil era fazer amigos no exterior e a solidão que vem quando moramos fora. Perdi minha vó.
Mais uma vez, chorei muito. Mas sobrevivi.
E na temporada seguinte, na Inglaterra, continuei passando por dificuldades e chorando bastante. Superei casos de xenofobia, assédio no trabalho e a primeira vez que eu fiquei doente de verdade sem ter minha mãe pra cuidar de mim. Perdi minha outra vó.
Mas novamente, os perrengues passaram, e eu fiquei bem.
Agora estou na quarta temporada morando fora, há um ano e meio em Berlim. Semana passada, eu chorei de raiva por causa de um perrengue daqui. Dessa vez, foi porque eu queria comprar um celular online e aparentemente eu comprei o produto errado. Tentei falar com a empresa, mas não conseguimos nos comunicar porque eles não falavam inglês e eu não falava alemão. O problema se resolveu no dia seguinte. E o choro, bem… Durou um minuto - e muito impulsionado pela tpm, se eu estiver sendo sincera.
O que eu quero dizer com tudo isso? Não sei bem, afinal isso aqui é um devaneio e pode ser que eu esteja dando voltas, sem chegar a conclusão nenhuma. Mas aguenta firme que juntos vamos nos entendendo.
A verdade é que, olhando para trás, eu consigo perceber como a prática de viajar me ajudou a amadurecer. Ou então pode ser que o meu amadurecimento nos últimos 10 anos me ajudou na prática de viajar. Seja qual for a ordem, o resultado é o mesmo: os perrengues sempre vão existir, mas eu lido melhor com eles.
Hoje, eu consigo superar mais rápido o medo, a tristeza e a raiva das coisas que dão errado. Eu consigo resolver problemas e burocracias sem me desesperar. Consigo entender e respeitar meus momentos de solidão sem achar que é o fim do mundo. Consigo organizar uma mala em menos de uma hora e passar por todo o esquema do aeroporto (quase) sem nenhum stress.
Eu aprendi a cozinhar bem (modéstia à parte), me viro em países onde não sei o idioma, desenvolvi práticas para evitar riscos nas viagens ou então contê-los, caso algo aconteça. Passei a desapegar de coisas - e pessoas - que não fazem sentido, aprendi a organizar minhas finanças para nunca faltar nada (aqui não tem amostra de comida em feira livre) e sei parar e respeitar meu corpo toda vez que minha saúde dá uma cambaleada.
Tudo isso eu venho aprendendo e desenvolvendo com prática e experiência. Tudo isso faz de mim o que eu sou hoje, me faz feliz e me dá sentido na vida.
Quando eu escuto dos outros comentários como “nossa que corajosa que você é”, sempre me dá um negócio que não sei bem explicar. Claro, concordo que mudar de vida e me mudar para um país que não sei a língua para recomeçar minha carreira exige, sim, um pouco de coragem.
O que me pega de uma maneira não muito legal é o “Nossa, que coragem” quando eu resolvo passar 3 dias passeando pela Estônia, por exemplo. São os “Mas você vai sozinha?” que estão na mesma categoria dos “E sua família deixa?” que eu escuto dos homens impertinentes que encontro pelo caminho. São os comentários que eu escuto porque sou mulher, e nada mais.
Eu comecei esse texto relembrado o assassinato de Maria José Coni e Marina Menegazzo porque esse caso abriu meus olhos sobre quão desconfortável é ser constantemente questionada e deslegitimizada por fazer algo que é extremamente natural para mim. Mas não para uma sociedade em que até 50 anos atrás as mulheres não podiam ter conta própria no banco.
Eu não deveria ter que ser “corajosa” para viajar sem a companhia de outra pessoa - muito menos um homem. Essa coragem de que falam é a mesma coragem que nós, mulheres, precisamos ter todos os dias, em todos os lugares.
Assim como muitas delas, os piores perrengues pelos quais já passei foram os assédios. Passei por um na Argentina quando nem sabia o que era isso. Passei por outro nos EUA, e dois na Inglaterra. Sabe onde mais eu passei por assédios? Em São Paulo, por um colega da faculdade, por dois homens que trabalhavam no mesmo lugar que eu, por alguns desconhecidos no ônibus, e por outros conhecidos também.
O assédio faz parte da vida da mulher, independente do seu status de estrangeira ou não.
Essas experiências, provavelmente iguais às de muitas de vocês, não trouxeram nada de bom. Não me fizeram mais forte nem mais preparada para o mundo. Só me renderam ansiedade e falta de confiança em mim mesma.
Mas por sorte não foram essas experiências que mais marcaram minhas viagens e aventuras pelo mundo. No final, gosto de acreditar que desenvolver minha prática de viajar me ajudou a ser mais capaz de resolver os problemas da vida. E, por consequência, me ajudou a superar também os problemas que, por enquanto, ainda não têm resolução.
Eu também amo viajar sozinha. É um exercício interessante de adaptação, de estar sozinha, de entender o que gosta de fazer quando viaja. Eu amo perceber esses detalhes. Foi assim que descobri que amo entrar em igrejas, mesmo não sendo cristã. A única coisa que mudou, é que não tenho mais vontade de andar sozinha nesses países mais "perigosos", como a África do Sul que fui em 2018 e achei super tenso.
incrivel ! quando viajei sozinha, tudo que me perguntavam era onde estava minha companhia?? e eu respondia > eu sou minha melhor companhia ! sempre