Eu sou apaixonada por filmes e séries sobre comida. Adoro ver de onde os alimentos vêm e qual a importância deles na construção de uma cultura. Mais ainda, a importância deles em manter a cultura de quem mora longe de casa.
Nesse sentido, minha série favorita - entre todas as categorias disponíveis no Netflix - é Somebody Feed Phil. Eu fico encantada em ver um tiozão agindo igual uma criança com overdose de açúcar toda vez que come algo gostoso.
Nessa última temporada, ele foi até Dubai comer num restaurante de origem palestina e aquele momento mágico aconteceu. Igual ao que acontece com o crítico de gastronomia no final de Ratatouille ou, para os mais "underground", que acontece em todo episódio de Food Wars.
Aquele momento, quando a comida te emociona.
Até recentemente, eu sempre ficava meio cética toda vez que via esse "momento mágico" em filmes. Por mais que eu tenha plena consciência da importância da comida nas minhas memórias mais afetivas, eu nunca senti essa emoção através dela.
Nunca entendi como que o crítico gastronômico em Ratatouille simplesmente relembra o amor da mãe numa bocada de legumes, ou por que o Phil chora ao comer um kibe feito por uma pessoa que ele acabou de conhecer.
Mas de uns tempos pra cá, eu percebo que a comida vem se tornando cada vez mais uma prova de afeto e conexão. E eu começo a entender essas emoções que só via na TV.
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Outro dia, eu recebi um casal de amigos japoneses em casa para um jantar, e o menu da noite foi uma feijoada.
Devo confessar que ao longo do dia eu me arrependi muito da minha sugestão. Afinal de contas, claramente subestimei o trabalho que seria fazer uma feijoada na Alemanha. Desde achar os cortes de porco, até achar o próprio feijão que só vende numa loja latina superfaturada, e cozinhar a feijoada até ficar no ponto certo - sem panela de pressão. Ah, e claro, eu nunca tinha feito uma feijoada na vida antes.
Morar fora faz isso com a gente. Tive 30 anos pra fazer feijoada no Brasil, mas foi na Alemanha que eu decidi que era hora de tentar…
Seja como for, a feijoada saiu. E quando meus amigos chegaram, eu estava ansiosíssima pela opinião deles, que estão acostumados a comer arroz sem sal, nem alho nem cebola. Esperava comentários do tipo "nossa, que interessante" ou ainda um "é bem diferente do que esperávamos".
Ao invés dos comentários, ouvi algo muito melhor; o tilintar dos talheres nos pratos, os huuuum e os uh-hum de quem come com gosto, e o som da cadeira se arrastando toda vez que alguém se levantava pra repetir o prato. O marido repetiu quatro vezes.
Nessa noite, eu senti.
É uma sensação meio doida pra ser sincera. Ver meus amigos comendo minha feijoada com tanto prazer me deu um sentimento que só pode ser traduzido como afeto. Uma felicidade de encher o peito - e a barriga.
Foi um daqueles raros momentos de conexão pra quem mora fora. Talvez porque o prato fosse uma feijoada. Talvez porque eu senti que estava compartilhando um pedaço importante da minha história e da minha cultura com pessoas queridas. Talvez porque eu senti que estava comendo em família. Mas naquela noite eu me senti em casa.
A comida é a parte central de todos os momentos importantes da minha vida.
Nas vezes que eu morei fora, assim como na noite da feijoada, foi ao redor de uma mesa posta que eu forjei minhas amizades. No refeitório da universidade nos EUA depois de um longo dia de aulas, ou nos pubs em Londres depois do trabalho, ou em jantares nas casas dos colegas em Berlim para celebrar a conquista de achar um apartamento.
E muito antes disso também. Ao longo da minha vida, as conversas mais importantes, tensas, decisivas, foram feitas à mesa de jantar. Foi na cozinha de casa que eu ouvi notícias das doenças que levaram minha vó Adélia e meu tio Maurício. Tive brigas com meus pais em cima do prato, e tive que comer muito peixe com gosto de lágrimas. Não gosto de bolo de chocolate, ele tem uma memória amarga.
Minha vó Helena ia lá em casa todas terças e quintas, sem falta, levando pão fresco da padaria. Eu fui criada com cheiro de manteiga quente e café recém coado, enquanto ouvia as senhoras falando sobre religião - uma era espírita, a outra, evangélica - e tentava brincar com nossa cachorrinha. Missão impossível, pois a Tuta não saia de baixo da mesa até comer todo o pão que jogavam pra ela. Quando penso em casa, é essa imagem que eu vejo.
Aos finais de semana, eu dormia na vó Adélia. Ninguém me mimava mais do que ela, que levava mingau de maizena na cama todo domingo de manhã. Eu acordava com o cheiro do mingau fresquinho, coberto de canela. Não tem como pensar em mingau sem pensar na vó.
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Olhando pra trás, eu começo a entender mais e mais as emoções que vejo na TV, com o crítico gastronômico de Ratatouille ou o Phil em Dubai.
Na infância, eu não sentia através da comida, mas ela estava lá. Minhas memórias são formadas pelos barulhos da cozinha em movimento e pelos aromas de café, manteiga, arroz, pudim, mingau…
Talvez o que eu precisasse era tempo.
Na última semana, minha vó Adélia teria feito 102 anos. Já se passaram mais de 10 anos desde que ela faleceu enquanto eu estava no intercâmbio nos EUA. Até hoje eu choro em cima do mingau de maizena. Não há quantidade de canela que consiga disfarçar o gosto das lágrimas. Mas aos pouquinhos, bem aos pouquinhos, meu mingau vai ficando mais gostoso.
Hoje, vejo minha mãe fazendo mingau pro meu sobrinho, e fico na esperança que a tradição continue. Com sorte, o mingau dele será ainda melhor.
Eu não tive tempo de perguntar, mas eu torço para que minhas avós tenham sentido o meu afeto quando eu comia a comida delas com vontade, igual o que eu senti quando meus amigos japoneses comeram minha feijoada.
Tschüßi!
Seu texto apareceu por aqui pelo notes e corri pra ler, que bom que ele apareceu.
Terça-feira completou um mês que minha vó partiu e o seu texto esquentou meu coração lembrando de todas as vezes, ao longo desses 28 anos que comi o seu "pudinho" com furinhos e o seu mousse de maracujá, que assim como o seu mingau, com certeza terá sua pitada de lágrimas a partir de agora.
Obrigada por dividir esses sentimentos nesse texto lindo.
Que lindo o texto! Na minha família, o ato de sentar na mesa e comer era super significativo. E foi na mesa que amores e tretas rolaram. Até hoje sinto uma cosquinha no coração e no estomago quando me deparo com uma carne assada, pq era o prato que meu avô amava e sabia fazer com maestria. Carrego essas memórias até hoje :)